HISTÓRIA e TÉCNICA

HISTÓRIA DA ESCOLA DE XILOGRAFIA DO HORTO
Fundado em 1886, o Instituto Florestal (Serviço Florestal) tinha a função de catalogar a fauna e a flora do estado de São Paulo. Octávio Vecchi (1878-1932), português e engenheiro agrônomo, em 1927, assumiu o cargo de diretor do Serviço Florestal e quatro anos depois, criou o Museu Florestal, hoje Museu Florestal Octavio Vecchi, onde é possivel apreciar a utilização das madeiras paulistas.
A escola de xilografia do Horto nasceu em 1940, já sob a direção de José Camargo Cabral, com a intenção de formar xilógrafos impressores. Anacrônica, pois esse ofício que teve seu auge em 1870, mas importante pelo acervo deixado.  
Foi escolhido como professor, o alemão Adolf Köhler (1882-1950), que estava no Brasil desde 1927, onde montara um ateliê na Rua Boa Vista, centro de São Paulo, oferecendo ilustrações para catálogos, anúncios de lojas, carimbos e ex-libris. Havia tentado uma carreira artística participando do I Salão Paulista de Belas Artes, em 1934, com quatro retratos em xilografia.
ex-libris do Adolf Kohler   
Desenho e xilogravura, impresso em cor azul para José Carlos de Macedo Soares(1883-1968)
   
Köhler tinha uma sólida formação em xilografia, jovem fez a formação na Alemanha e estágios de aperfeiçoamento na França e na Hungria, estabelecendo aos 31 anos de idade, um pequeno ateliê à Berlim.
Adolf Köhler trabalhando na Escola de Xilografia do Horto (foto do acervo do Museu Octavio Vecchi)
Foram recrutados alunos entre os funcionários do serviço florestal que tivessem alguma aptidão para o desenho. Muitos deles, após a experiência, foram transferidos para outras tarefas e nunca mais fizeram uma única gravura. Rosita Gouveia() registra que alguns moradores locais se ofereceram como alunos procurando profissionalização.
A Escola funcionou regularmente até 1945, quando em 1946 houve uma debandada dos alunos que foram classificados funcionalmente com “trabalhador braçal” – a mais baixa remuneração do Serviço Florestal, quando todos esperavam ser “desenhistas”, a carreira profissional que desejavam. A escola quase não resistiu a esse baque porque mesmo alunos talentosos pediram suas transferências a outros setores onde teriam maior remuneração. Apesar de tudo, a escola funcionou até 1950 quando o mestre morreu. Formou alguns gravadores: José Cruz, Waldemar Moll, que trabalhou nessa profissão na revista “Chácaras e Quintais” e Itajahy Martins ( ) foi o único aluno que seguiu uma carreira artística, rebelde às técnicas de ensino da escola, foi um grande divulgador da xilogravura e o primeiro titular de uma disciplina de gravura no Brasil.
 xilogravura de Itajahi Martins 

Köhler também influenciou a gravura de Lívio Abramo (1903-1922). Em 1950 quando ganhou o prêmio viagem no Salão Nacional de Belas Artes usou justamente madeiras preparadas pelo alemão. Reproduzimos aqui depoimento do artista, dado em 10.03.86:
“O meu aprendizado com o Köhler na gravura de reprodução resultou muito importante para mim. Não como linguagem técnica simplesmente, mas aperfeiçoando a estética dos efeitos gráficos. Eu já conhecia a madeira de topo, mas fiz esse tipo de gravura incentivado pelo Köhler. Eu era admirador da gravura de reprodução do século passado, que não é só de “reprodução”, mas também artística em grau extremo. E eu, então, estava louco para aprender essa técnica e quando o Köhlerchegou e me explicou como se fazia, eu apliquei em parte porque a minha visão plástica era diferente da dos gravadores do século passado. Mas eu achava, e acho ainda, que é uma técnica que pode ser usada pelos artistas modernos com todos os créditos de modernidade que a gente possa dar a eles.
O Köhler era uma pessoa que eu me lembro com muito carinho, com muito respeito e me ensinou muitas coisas que eu, gravador incipiente, não sabia. Ele morreu esquecido e o seu trabalho que poderia ser tão importante do ponto de vista cultural, assim como a permanência de uma técnica artística tão rara, se perdeu. Foi uma pena.”
Nossa intenção é justamente que esse trabalho não fique perdido, que o público possa ver essas imagens e aprender através delas.

Método didático

A Escola seguia os princípios didáticos da gravura de reprodução: cópia, reprodução, controle formal e temático.  Apoiava-se nos ensinamentos que recebeu Adolph Köhler na Alemanha, ou seja, método de profissionalização de xilógrafos empregado de 1850 a 1900. Havia anonimato e padronização, o que era útil à imprensa da época, onde um bloco podia ser feito por vários artistas.
Portanto, a não ser, poucas matrizes, onde a rebeldia ou a necessidade de afirmar que aquela obra era sua, fizeram o aprendiz marcar seu nome ou iniciais no bloco. Por princípio, todas as matrizes do Horto deveriam ser anônimas. Não se queria criatividade e que os gravadores pudessem dar qualquer toque pessoal ao desenho, mas que fossem exímios copistas. Por isso, muitos desenhos são repetidos.
 desenho não gravado
gravura

O Sr. Luís Fernandes , aluno da Escola de 1940-1943, em palestra dada no Museu Octavio Vecchi, em 29 de novembro de 2009, explicou que eles já recebiam as matrizes desenhadas e aplicavam ao desenho os padrões gráficos estabelecidos pelo mestre. Registramos mais de 200 matrizes desenhadas e não gravadas. A escola também ensinava a desenhar, como foi o caso de Maria Elizabeth Veiss que se tornou desenhista no Horto, aposentando-se em 1977. É dela o seguinte depoimento dado em 12.07.1986:
quando eu comecei a aprender desenho com o professor Köhler ele me perguntou em que eu gostaria de me especializar. Como gosto muito de plantas, eu disse que er isso que eu queria aprender. Então ele disse: “Estpa bom, em dois anos a senhora estará especializada em plantas”... O professor dizia que para fazer desenho tinha de saber copiar muito bem. Além de praticar pelo menos 4 horas por dia. Eu copiava muitas coisas de livros e revistas que ele trazia, depois quando comecei na Botânica, então eu copiava do natural. Punha a planta na frente, ele ensinava a medir, a marcar os planos e a copiar do microscópio.”
Algumas imagens das matrizes desenhadas eu encontram-se no acervo do Museu Octavio Vecchi.
 matriz desenhada e não gravada

Temas

Tradicionalmente, as gravuras do século xix serviam à informação e, portanto ilustravam manuais de toda ordem: natureza, arte e engenho.
Os temas da escola não fogem à regra. Temos: paisagens, plantas, animais, ferramentas, máquinas, Sretratos e exercícios geométricos. As imagens podem ser vistas nesse blog na página GRAVURAS

Madeira

As matrizes da Escola do Horto são todas de guatambu.
No acervo do museu achamos esse lindo pedaço de topo, sem a preparação branca para o desenho:

Como é uma madeira muito dura com fibras unidas e textura firme que permite um bom alisamento e a obtenção de linhas finas no desenho.

fotos de guatambu no Horto Florestal de São Paulo

É uma árvore encontrada desde o sul da Bahia até o Rio Grande do Sul. Grande e frondosa, sua altura varia de 10 a 30 metros. Seu tronco, de cor acinzentada e casca áspera, mede de 40 a 80 cm de diâmetro.
Há diversas espécies de guatambu: guatambu-branco (Aspidosperma olivaaceum Muell. Arg., Apocinácea), guatambu amarelo (Aspidosperma recemosum), Guatambu-rosa (Aspidosperma olivaaceum Muell. Arg., Apocinácea), guatambu-oliva, guatambu-vermelho, guatambu-marfim, guatambu-árvore, guatambu-madeira, guatambu-peroba. Popularmente conhecido como amarelão, peroba, tambu, pequiá-branco, biriba, pau-pereira, entre outras denominações.
Após pesquisa, Köhler estabeleceu que o guatambu rosa era o melhor substituto ao buxo (Buxus sempervirens) que se usava na Europa para a xilogravura de topo.
O guatambu não só tinha a densidade desejada, como resistia à pressão da prensa, com a vantagem de ser uma árvore mais frondosa e permitir blocos maiores para gravação. O recurso para fazer superfícies maiores de buxo, era recortar vários pedaços e colar:
A madeira era cortada em pedaços de diversos tamanhos, mas sempre com a espessura de 23 mm para poder ser usada nas prensas industriais.
Esses blocos eram lixados com diversos grãos de lixa até ficarem perfeitamente lisos. Depois eram preparados com uma mistura de óxido de zinco e goma arábica até ficarem brancos e serem desenhados como um papel. Os desenhos eram copiados em papel vegetal e repassados para o bloco, usando já a inversao que o papel possibilitava.
Alguns detalhes eram feitos diretamente sobre o bloco usando a imagem original e um espelho.

Técnica

Os blocos eram gravados com buril. O buril é uma ferramenta de aço, usada por joelheiros, depois por gravadores em metal e finalmente por xilogravadores. É uma barra com uma ponta cortante, um ângulo muito afiado nos mais diferentes formatos que permite cortar a matriz no efeito requerido.
O prof. Köhler possuía uma coleção pessoal de mais de 200 buris, que deveriam ter sido dados ao Lívio Abramo, mas como esse se encontrava na Europa quando o professor morreu, os buris tiveram um fim desconhecido.
No acervo do museu ainda temos os buris que eram utlizados pelos alunos
 ferramentas usadas pelos alunos

A madeira era colocada sobre a almofada de couro para possibilitar os traços. Uma mão move a matriz sobre a almofada enquanto a outra mão move buril, fazendo o traço desejado. Para traços retos move-se a ferramenta, para traços arredondados move-se a matriz.
Na parte cortada não entra tinta e o traço ficará branco. No caso da escola do horto, retira-se o material para formar traços negros – a madeira que resta – simula o desenho a bico de pena. As diferenças tonais são obtidas pelas hachuras: linhas paralelas contínuas, interrompidas, cruzadas, pontos, etc.
A impressão era sempre feita na prensa (letter press) sobre papel e sempre com tinta preta.

UM POUCO DE HISTÓRIA DA XILOGRAVURA

No mundo

A gravação sempre acompanhou o homem, mas a transferência para tecidos e papel parece ter começado na China no século II. O papel, essencial ao desenvolvimento da técnica chegou ao ocidente só em 751.
A xilogravura se registra no ocidente desde o século XIV e a primeira xilogravura datada é de 1423, uma imagem de São Cristóvão, conservada até os dias atuais na Inglaterra. Basicamente se produziam imagens de santos e baralhos.
No século Xv já aparecem livros e anúncios feitos em xilogravuras. A gravura em metal aparece na segunda metade do mesmo século.
No século XVI as gravuras são essenciais para a educação, a divulgação de descobertas e as gravuras ilustram todo o conhecimento humano: máquinas, inventos, arte, fauna, flora e retratos.
A xilogravura em relação à gravura em metal, que apresentava maior verossemelhança e detalhes, passa a ser menos usada e apenas pelos mais pobres.
No final do século XVIII Thomas Bewick teve a idéia de usar uma madeira mais dura como matriz e marcar os desenhos com o buril, instrumento usado para gravura em metal e que dava uma maior definição ao traço. Dessa maneira Bewick diminuiu os custos de produção de livros ilustrados e abriu caminho para a produção em massa de imagens pictóricas. Mas com a invenção de processos de impressão a partir da fotografia a xilogravura no final desse mesmo século, volta a ser considerada uma técnica antiquada.

A partir do final do século XiX, a xilogravura faz seu renascimento e será principalmente usada como arte: ilustração de livros finos e de edição limitada de estampas. Um meio de expressão da poética pessoal do artista. São exemplos o movimento expressionista alemão e os franceses Feliz Valotton, Gauguin, Picasso,  etc.

No Brasil

Antonio Costella em seu livro Introdução à Gravura e História da Xilogravura (), diz que os primeiros xilógrafos são os índios, que usavam matrizes em madeira para pintar o corpo ou a roupa.
Mas normalmente se estabelece que a gravura no Brasil só começa em 1808. Até a vinda da família real era proíbida como forma de controlar as notícias e os títulos financeiros. É criada uma imprensa oficial com o acervo do Conde de Barca e foram instalados o Arquivo Militar (mapas e conhecimento) e o Colégio das Fábricas (cartas de jogar e chitas)
Com a liberação das gráficas, em 1823, começaram a surgir os profissionais necessários para ilustrar livros, jornais e propagandas. Mas como no resto do mundo, em breve se instalou a litografia e a gravura em metal. Em 1826 já havia pelo menos quatro prelos litográficos no Rio de Janeiro ().
A xilogravura ficou limitada a impressos baratos, carimbos e eventuais ilustrações em jornais.
No século XX, os artistas começam a usar a xilogravura como forma artística. Os pioneiros são Oswaldo Goeldi (1859-1961), que começou a gravar em madeira em 1924 e Lívio Abramo (1903-1992) que se inicia na xilogravura em 1926. Alguns estrangeiros fugindo das guerras também trazem suas novas linguagens, citamos, por exemplo, Lasar Segall (1891-1957), que se instala no Brasil em 1924 e Axel Leskoschek (1889 - 1975) que em 1939 leciona no Rio de Janeiro

Nesse ponto, a escola de xilografia do Horto é anacrônica, insistindo num tipo de gravura que não tinha mais espaço, nem no mundo industrial, nem no mundo artístico. No livro, “Gravura e Gravadores em Madeira”, publicado em 1941, Oswaldo Silva escreve um xilógrafo vindo do século XIX, ou tendo aprendido segundo as normas desse tempo, jamais pode se harmonizar com outra técnica, justamente porque nãoo encontra beleza em símbolos gráficos que não lhe são familiares...” ”Entretanto, sentimos que a nossa causa, que defendemos, está perdida; o mundo artístico de hoje está sendo educado com as noções de uma estética revolucionária; a juventude de amanhã, olhará a obra do século xix, como ontem nós olhávamos a arte egípcia”

Xilogravura é a técnica de gravura na qual se utiliza madeira como matriz e possibilita a reprodução da imagem gravada sobre papel ou outro suporte adequado.  
No caso do Horto, todas as matrizes são de guatambu rosa.
Uma madeira bem dura que permite detalhes e linhas finas.
A técnica usada é gravura de topo, isto é, onde a madeira é cortada em fatias transversais do tronco (madeira em pé) para que as fibras  fiquem verticais e não prejudiquem o entalhe do desenho.  
Entalha-se na madeira, com ajuda de instrumento cortante, a figura ou forma que se pretende imprimir. Usam-se buris, goivas, facas e formões para se obter o resultado desejado, formando assim uma matriz que poderá ser reproduzida.
No caso das matrizes da Escola de Xilografia do Horto são usados muitos tipos de buris.
  matriz a ser entintada

 Em seguida usa-se um rolo de borracha embebido em tinta, tocando só as partes elevadas do entalhe e aí deixando tinta.
 

entintando a matriz 

Através da pressão, a tinta passa para o suporte. No caso da escola era usada um prensa (que não existe mais no acervo do Museu). Aqui ilustramos o processo com uma colher de osso.
O final do processo é a impressão em alto relevo em papel ou pano especial, que fica impregnado com a tinta, revelando a figura. 
 
A imagem impressa é essa.
Notem que a imagem é invertida na impressão.

AS GRAVURAS DA ESCOLA DE XILOGRAFIA DO HORTO

Com muito trabalho, papel japonês e duas colheres de osso, imprimimos todas as 417 matrizes encontradas no acervo do Horto. Algumas jamais impressas antes.
Nas palavras dos amigos Yili Rojas e Ulisses Boscoli, o “resgate de um tesouro” “através de 2 colheres de osso”.